Matéria publicada na Revista Photo Magazine em sua edição 25, no ano de 2009. Texto de André Teixeira
Em 1983, o Brasil vivia um momento político que seria o começo do fim da ditadura militar iniciada em 1964 com o golpe que derrubou João Goulart da Presidência da República. Com a economia em crise após o fim do “milagre econômico” e as denúncias de tortura aos oposicionistas do regime, sinais de liberdade como os movimentos grevistas do final da década de 1970 e a realização de eleições estaduais diretas para governador em 1982 mostravam que cedo ou tarde os militares acabariam devolvendo o poder a quem de direito, ou seja, alguém eleito pelo voto popular. Esse momento foi marcado pela proposta do deputado Dante de Oliveira, que sugeriu uma emenda constitucional que permitiria realização de eleições diretas para presidente.
Num Congresso dominado por representantes simpáticos ao regime, a aprovação da emenda parecia um sonho impossível – o que, de fato, acabou se confirmando. Mas ela deflagrou um movimento popular tão forte que, se não deu resultados imediatos, abalou de vez as estruturas da malfadada ditadura militar e possibilitou que, em 1989, os brasileiros pudessem finalmente escolher um representante para comandar os destinos da Nação.
O ponto culminante desses momentos foi a realização de comícios pró-diretas em praticamente todo o Brasil como está acima de autoria de Orlando Brito. A princípio tímidos, com modesta participação popular, eles acabaram se transformando em grandes manifestações, que chegaram a atrair um milhão de pessoas, como o lendário comício da Candelária, no Rio. Foi um daqueles raros momentos em que a vontade do povo parecia entendida e compartilhada pela maior parte da classe política e artística.
A emenda foi a votação em abril de 1984, sob forte pressão do governo, obviamente contrário a sua aprovação. A população não pôde acompanhar a votação dentro do plenário e, fora dele, tanques, metralhadoras e centenas de homens do Exército impediam a realização de manifestações, mostrando claramente que aquela ideia não era exatamente bem vista pelos donos do poder.
Como se previa, a emenda não foi aprovada, simbolizada pela imagem de Orlando Brito acima. Recebeu apenas 298 dos 320 votos necessários. O Brasil teria que passar por mais uma eleição indireta, vencida por Tancredo Neves, um dos líderes das Diretas Já.
Para relembrar os 25 anos desse momento histórico, convidamos alguns fotógrafos que tiveram a chance de registrá-lo para falar da emoção de participar de um movimento que, se não obteve uma vitória imediata, abriu as portas para a redemocratização do país. Na época, uns já profissionais experientes e consagrados, como Orlando Brito e Eurico Dantas, outros iniciantes, como José Roberto Serra, além de Ed Viggiani, Marcio RM (foto de abertura) e André Dusek – todos, porém, com a consciência e orgulho de presenciar e deixar para a história imagens de uma manifestação inesquecível.
Orlando Brito
Comecei cedo, ainda menino, na profissão de jornalista. Aos 16 anos já estava cobrindo os lances do poder, em pleno regime militar. Desde o governo dos marechais Castello Branco e Costa e Silva até o período João Figueiredo, passando pelo tempo dos generais Médici e Geisel, vi e vivi de perto o quanto é triste a falta de democracia, por isso as Diretas Já me marcaram muito.
Em 1983, eu era fotógrafo de Veja e fui destacado para cobrir o Diretas-Já. Fui a praticamente todos os comícios, do primeiro, em Goiânia, ao qual compareceram uns poucos gatos pingados, até os da Praça da Sé, em São Paulo, ao da Candelária, no Rio, que arrastaram multidões.
Naquela época ainda não havia os maravilhosos recursos da Internet e da fotografia digital. A Editora Abril me facultava o que havia de melhor em termos de equipamento. Eram as então modernas Nikon F3, com zooms luminosos. Mas ainda assim era um sofrimento obter boas fotos com os filmes que dispúnhamos, já que os comícios eram todos noturnos. Benditos cromos de 200 e 400 ASA e os incríveis Tri-X preto e branco. Na verdade, colher as fotos não era o mais complicado. Mais difícil era enviar os filmes para a revista a tempo de alcançar os fechamentos.
É difícil para um jornalista torcer por uma causa. Mas quando esta é a liberdade, não há como se manter imparcial, e isso aconteceu naquele momento. Graças àquela luta, em outubro do ano que vem, cerca de 170 milhões de brasileiros irão novamente às urnas para, com seu voto direto, escolher o novo presidente da República. Seja ele quem for, a democracia estará mais uma vez de parabéns.
Ed Viggiani
No chamado “Comício do Milhão”, que aconteceu na Candelária, no Rio, fui trabalhar com um bip porque poderia ser chamado para levar a minha mulher ao hospital. Ela estava grávida e a criança poderia nascer a qualquer momento. O meu filho acabou nascendo no dia 17, um dia após o comício de São Paulo. Na Candelária, estava trabalhando para a IstoÉ, e fiquei no lugar reservado aos fotógrafos, perto do palanque. O local era pequeno para a quantidade de fotógrafos e muito baixo para fazermos um bom trabalho. Tínhamos que nos pendurar para conseguir alguma coisa. No discurso do advogado Sobral Pinto, tentei me empoleirar para fazer a foto do conceituado jurista e o locutor Osmar Santos, que estava apresentando o evento, teve que me segurar para que o Dr. Sobral terminasse o discurso. Osmar Santos citou esse fato como o momento que a imprensa incomodou. Acabei entrando para a História da campanha das Diretas Já como o fotógrafo que atrapalhou a fala do doutor Sobral Pinto…
Eurico Dantas
Na época da campanha pelas Diretas, eu trabalhava no jornal O Globo. No dia do comício da Candelária, fui escalado para fazer fotos de um helicóptero, acompanhado de outros fotógrafos. O helicóptero não tinha permissão para sobrevoar o palanque, mas insistimos tanto que o piloto acabou concordando em chegar mais perto, passando por cima da multidão. Fizemos as fotos rapidamente e retornamos, pois ainda tínhamos que colocar os filmes para revelar e fazer as ampliações. Eu trabalhava com uma F3, da Nikon, que na época era o que havia de mais avançado para fotojornalismo.
As fotos foram feitas no final da tarde, quando a multidão ainda estava chegando. Por isso, em algumas delas havia clarões na Avenida Presidente Vargas, e uma delas foi publicada na primeira página do jornal. Para minha surpresa, a hoje vereadora Cidinha Campos, que na época tinha um programa de rádio muito popular e fazia parte do PDT, partido comandado pelo então governador Leonel Brizola e que fazia parte da campanha, começou a falar mal de mim pelo rádio, me chamando de tendencioso, já que a foto não mostrava toda a multidão que encheu a Avenida.
Pelo que ela falava, parecia que era uma conspiração do jornal para não dar a importância devida ao movimento. Uma acusação injusta, já que eu só tinha feito meu trabalho, sem nenhuma orientação dos editores do jornal para mostrar que havia pouca gente. Fotografei, como os outros, o que estava acontecendo na hora, se escolheram aquela foto não foi por minha culpa. O fato é que passei alguns dias sendo criticado por gente que nem me conhecia e nem sabia como era o trabalho de um repórter-fotográfico. Mas tudo bem, o importante é ter a consciência tranquila de ter feito meu trabalho da melhor maneira possível, como sempre fiz nesses mais de 50 anos de fotografia.
José Roberto Serra
No início de 1983, eu ainda era estudante de Jornalismo. Já gostava de fotografia, fazia uns trabalhos, mas só no final daquele ano entraria no Jornal do Brasil, como frila. Como queria seguir a carreira de repórter-fotográfico, achei que seria interessante tentar fazer algumas fotos do comício da Candelária. Queria sentir o clima, ver como era cobrir um evento daquele tamanho, mesmo que sem credencial. Treinar mesmo.
Cheguei cedo e fiquei rodando pela Avenida Rio Branco, fotografando as pessoas, a movimentação. Não fiquei com os fotógrafos profissionais, que estavam junto ao palanque. Consegui essa foto do Lula porque ele estava num canto, acho que esperando a hora de falar, e deu para fazer com uma teleobjetiva, de baixo.
Era um momento muito interessante, um movimento forte que corria o Brasil, os exilados políticos tinham voltado há pouco tempo. Nunca tinha visto nada parecido com aquilo, havia um clima de cumplicidade entre as pessoas, todos estavam ali pela mesma razão, independente de partidos. Acho que a foto daquela senhora com a bandeira na mão e uma expressão de felicidade mostra bem essa sensação. Foi legal ter participado e registrado tudo isso, mesmo com apenas um equipamento básico, sem muitos recursos – se não me engano, uma FM2, da Nikon, e apenas uma 28 mm e uma 70-200 da Vivitar – e poucos filmes. Estudante, grana curta, você sabe… mas as fotos foram importantes profissionalmente, tanto pelo treinamento quanto para poder, depois, colocá-las no portfolio. Além, claro, de ter visto de perto um momento importante de nossa história.
André Dusek
Era grande o entusiasmo da população pela possibilidade de voltar a ter eleições diretas para presidente da república. Todos os setores da sociedade e todas as categorias profissionais se manifestavam a favor do movimento Diretas Já. Até os jornalistas que por principio deveriam se manter numa posição neutra diante dos fatos eram claramente a favor das eleições diretas. Tenho uma foto que mostra um grupo de mulheres jornalistas vestindo uma camiseta onde estava escrito “Eu quero votar para Presidente” durante uma entrevista coletiva do deputado Nelson Marchesan, líder do governo Figueiredo na Câmara dos Deputados. Eu era na época presidente da União dos Fotógrafos de Brasília e nós fizemos uma grande exposição de fotografias aonde distribuímos adesivos que dizia “Queremos fotografar as eleições. Diretas Já” e que todos os presentes usavam no peito durante o evento.
No dia da votação, no plenário da Câmara dos Deputados, todos os líderes a favor das Diretas Já, como Ulysses Guimarães, Freitas Nobre, Humberto Lucena, o sociólogo Fernado Henrique Cardoso e o deputado autor da emenda que reinstituía as eleições diretas pra presidente, deputado Dante de Oliveira, usavam gravatas amarelas, que era a cor das Diretas Já.
Eu trabalhava na Agência AGIL Fotojornalismo e só fazia a cobertura do Congresso Nacional, pois nessa época do regime militar eu não conseguia ter a minha credencial da presidência da república por motivos que até hoje não sei (acho que foi pela minha participação no movimento estudantil na UnB no final dos anos 70). Só pude ser credenciado no Palácio do Planalto no começo do governo José Sarney. Por esse motivo eu só cobria o Congresso. Eu usava uma câmera Nikon FM e três lentes, uma 28 mm, uma normal 50 mm e uma tele 180 mm, e usava freqüentemente filmes PB Tri X 400. Em eventos importantes como a votação das Diretas Já eu usava outra câmera Nikon FM com filmes cromo, justamente para mostrar detalhes de cor, como, por exemplo, as gravatas “amarelas”.
Se eu me sentia feliz de ter feito a cobertura das Diretas Já há 25 anos, essa recordação hoje me faz sentir muito mais orgulhoso e agradecido a Deus por ter me dado a oportunidade de feito parte dessa história recente do Brasil.
Márcio RM
Havia uma grande expectativa para a realização dos comícios na praça da Sé (São Paulo) e na Candelária (Rio de Janeiro), após a realização dos vários outros comícios pelo país.
Moro no Rio de Janeiro e no início da tarde do dia do comício me dirigi para o centro da cidade para fazer a cobertura do que aconteceria na minha cidade. Quando cheguei para fotografar o comício, na entrada para a área cercada fui inicialmente barrado, apesar de ser jornalista registrado e sindicalizado. Mesmo mostrando uma carteira que provava a minha situação, a pessoa na entrada queria que eu fosse contratado de algum veículo. Após ele liberar a entrada para um fotógrafo estrangeiro e eu perguntar se o comício era pelas Diretas, que buscavam (e conseguiram) a volta da democracia com eleições livres, tive a entrada autorizada. Eu me posicionei na frente da girafa de microfones, ao pé da qual coloquei a minha bolsa de equipamentos e ali fiquei até o fim. Desta forma pude fotografar tanto as pessoas que falaram nos microfones, assim como diferentes situações no palanque e fora dele. De cima do palanque eu via a figura de um guarda na frente da grade que separava o público do palanque e um cartaz no chão, ande estava escrita a palavra Diretas.
Fiz algumas fotos com a 50 mm e a 24 mm. Após alguns discursos observei que junto ao guarda estava uma pequena cartaz, com a palavra já nele. Com a lente normal fiz uma única foto, onde a pessoa ao centro (com a bandeira) parece falar espere por mim (ou por nós). Esta cobertura foi uma das importantes que fiz na minha cidade, não só pela importância deste comício na história do Brasil, como pelas imagens que produzi.