Matéria publicada na edição 24 da revista impressa Photo Magazine.
Aceito o desafio de escrever sobre José Medeiros, um homem fisicamente pequeno, mas um gigante na sua criatividade, discreto, simplicidade de sertanejo – “nasci em 1921, no Piauí, imagine!”, era meu amigo, companheiro de redação em “O Cruzeiro” durante 10 anos, moramos juntos, éramos cunhados, dele guardo nítida lembrança.
Sua vida: meu pai, contava ele, “era amador fotográfico e gostava de ir, todos os domingos, à praça tirar retratos da família. A pose era sempre a clássica: pai e mãe, sentados, com os filhos em volta. Ele ligava o auto-disparador e, quando virava as costas e corria para a câmera montada sobre um tripé, eu aproveitava e fazia caretas: em todas as fotos minhas, de menino, eu saia fazendo caras incríveis e ele ficava furioso comigo”. Ainda menino, em Teresina, sua cidade natal, ficava horas a fio num quarto escuro: fez um orifício numa porta (que dava saída para a rua) e por ele entravam imagens invertidas de quem passava na calçada. Foi o seu primeiro momento de imagem fotográfica – o orifício a lente, a parede o filme.
Com 12 anos frequentava o laboratório de um fotógrafo na sua cidade, Waldyr Fortes, cuja mulher o deixou por outro homem, vários filhos para criar. Meses depois reapareceu e quando o retratista soube da volta da esposa pôs uma câmera na mão de José Medeiros para que o momento do reencontro fosse registrado. Com uma recomendação – “não me perca o abraço na chegada dela”… Estava definido que José Medeiros era, a partir daquele momento, uma “alma perdida”, estava infectado pelo vírus essencial para a prática do fotojornalismo.
Frequentou durante dois anos uma faculdade de arquitetura, foi funcionário dos Correios e Telégrafos e do Departamento Nacional do Café, três desastres acumulados. Começou profissionalmente, em fotografia, na SOMBRA, uma revista de mundanismo, no Rio de Janeiro, onde chegou em plena guerra, muito impressionado com a viagem, desde Parnaíba, com o navio sempre às escuras. Na escala em Salvador ganhou as ruas da Bahia voltando ao cais na hora da saída do navio. A velha cidade foi o seu encanto de toda a vida. Na condição de fotógrafo de “O Cruzeiro” passou longas temporadas na “boa terra”, conheceu artistas, gente de candomblé, ficou amigo de Pierre Verger de quem herdou grande influência no interesse por minorias raciais.
Quando entrou para a equipe da revista “O Cruzeiro”, em 1946, lá encontrou o francês Jean Manzon que pontificava com um trabalho precioso, vazado em sensacionalismo: suas fotos foram sempre posadas, produzidas com iluminação por duas e até mais lâmpadas “flash”. Levava consigo um assistente o que acentuava a falta de espontaneidade no resultado final. Trazido para a revista pelo próprio Manzon, desde logo Medeiros publicou um trabalho diferenciado, de uma identificação com seus fotografados: saltou por cima de sua geração de fotógrafos ditos corretos e acadêmicos, inventando um estilo pessoal, cheio de poesia, inspiração e improvisação. E em preto-e-branco, porque, segundo me disse uma vez, “a cor satisfaz olhos medíocres mascarando a realidade. O mundo é tão em preto-e-branco”…
Nas suas palavras “fotojornalista significa ser uma pessoa que tem mais do que imaginação, é ser ao mesmo tempo editor, artista, cenógrafo, repórter, crítico de si mesmo ao fazer cada fotografia”. Derrubou preconceitos abrindo caminhos para profissionais que o conheceram delineando o perfil do profissional de fotografia para a imprensa brasileira, tanto de jornais como de semanários. O comprometimento de Medeiros esteve sempre na sua postura de testemunhar, sem interferir, ou tentar recriar a realidade do fato, praticando a máxima de W. Eugene Smith, “deixe que a verdade seja o seu preconceito”.
Por limitações de laboratório a revista “O Cruzeiro” exigia de seus profissionais o uso de câmeras com formato 6×6 com visualização reflex. Medeiros “forçou a barra” e passou a voltar de viagens com filmes 35 milímetros sofrendo pressão da direção da empresa. Justificava que levava uma Leica para o caso de falha do equipamento de “flash”, fato que na realidade não acontecia, era uma desculpa esfarrapada para, com lentes luminosas e filmes mais sensíveis, fazer fotografias sob qualquer condição de luz. Acabou vencendo e impôs, pouco a pouco, a mentalidade do formato miniatura, o que trouxe para a reportagem uma dinâmica muito superior ao obtido com o formato de negativo quadrado.
Candomblé, feiras, carnaval, minorias raciais, índios, negros, loucos, presidiários, artistas de todas as artes, mineiros nas profundezas da terra, o charme das mulheres brasileiras, um encanto por crianças, tudo isto foi motivo para José Medeiros legar à fotografia brasileira um acervo de milhares de imagens que contam, sem retoque ou afetação, cores desnecessárias ou posturas ensaiadas uma importante fatia da vida brasileira dos anos 40 a 70. Em 1956 ficou retido numa aldeia Caiapó devido à cheia de um rio que não permitia a navegação: na hora da fome disputou uma perna de macaco com Arlindo Silva, o redator que o acompanhava, chegando os dois às vias de fato, grandes amigos que sempre foram…
Foi chamado de “poeta da luz” pelos profissionais de cinema para quem fotografou filmes importantes, tais como (entre dezenas deles) Xica da Silva, Memórias do Cárcere, da obra de Graciliano Ramos e Parceiros da Aventura, este último como autor da história, diretor e fotógrafo. Filmou para diretores ingleses, fez filmes em Ghana, Lagos, na África e Cali e Tulúa, na Colômbia. Fotografou documentários para diretores americanos e suecos, em 1965. Durante três anos ensinou fotografia de cinema em Santo Antonio de los Baños, Cuba, um projeto de Gabriel Garcia Márquez e Fidel Castro. Falava fluentemente inglês e francês: o diretor de “O Cruzeiro”, Leão Gondim, certa vez mandou chamá-lo à sua sala para servir de intérprete numa visita de um americano à empresa. Medeiros mandou o portador do recado dizer ao patrão que, “hoje não estou com vontade de falar em inglês”. E não foi.
Em clubes noturnos cantava e sapateava. Para isto levava sempre uma gravata borboleta no bolso do paletó. Durante a filmagem de uma película de Roberto Carlos, na Flórida, Estados Unidos, José Medeiros foi detido, pela madrugada, por uma patrulha de trânsito e levado a um posto policial, para explicar o que fazia no meio de uma auto-pista: parou seu carro num acostamento para espantar levas de sapos que atravessavam a estrada e eram esmagados pelos carros que passavam em alta velocidade.
O sertanista Orlando Villas Boas flagrou José Medeiros deitado numa rede e cercado por uns dez índios xavantes, ensinando-lhes pacientemente a letra, em inglês, da música “Nature Boy”. There was a boy A very strange, enchanted boy…
Morreu na Itália, em viagem de trabalho.