Vi que o fotógrafo Flávio Damm, um ídolo na arte de fotografar e na escrita também que faleceu ano passado, é homenageado no Paraty em Foco. Me deu uma saudade danada do véio com quem conversava (trocava e-mail pra não passar por mentiroso) quase que diariamente e republico artigo original da Photo Magazine de sua lavra sobre artistas plásticos retratados por fotógrafos.
Quando o seu assistente, o pintor Enrico Bianco, me procurou para fotografar o mestre da arte brasileira, do século vinte, fui logo prevenido. Portinari acabava de ser avô e queria que a neta Denise fosse fotografada para ele poder, baseado nas imagens, pintar retratos dela. Este acompanhamento eu fiz, durante dois anos, e resultou em cerca de 26 retratos assinados pelo avô coruja. Eu já conhecia Portinari e logo as coisas se inverteram, eu calado e ele puxando assunto.
Ficamos amigos e dele guardo uma carinhosa carta. Meu filho tem o seu nome, uma homenagem. Estabelecida uma boa relação pedi ao “seu Candinho” que me permitisse fazer fotos de seu dia-a-dia, aproveitando as horas de espera pela neta chegar ao atelier e ser fotografada. Durante os dois últimos de vida do pintor, 1960 a 1962, realizei mais de mil negativos, em preto e branco e em formato 35mm que são o único registro jamais feito, com esta extensão, da intimidade profissional, de um artista brasileiro.
As mãos em “close”, o café, o preparo do cachimbo, a mistura das tintas na paleta, a lavagem dos pinceis, o chamego com a menininha, o sem-jeito de tê-la no colo, a solidão que o acompanhava pelo abandono familiar, o êxtase e a dúvida avaliando o trabalho em andamento, sempre impecável em seus coletes coloridos, o cabelo penteado com o topete caprichado. Uma figura, Candido Portinari.
O que me inspirou para esta ideia de fazer o ensaio, paralelamente às fotos da neta, foi o trabalho que David Douglas Duncan, fotógrafo americano, fez com Picasso em seu atelier em Saint-Paul-de-Vance, na França. Durante seis meses Duncan morou na casa de Picasso e teve a sorte de registrar o mais festivo, excêntrico, explosivo e genial artista. São imagens de grande beleza e fartura de histrionismo: o malaguenho dançando de bermudas, farreando com amigos e amigas pelas ruas da aldeia francesa, ternura, raiva, gozo, as explosões nas telas e na vida, o pintor, o ceramista, o fazedor de farsas dignas de circo, o escultor.
Cenas de filmes sobre Picasso foram inspiradas nas fotos de Duncan, bem como livros fotográficos, esta linguagem que tão bem dispensa tradução ou rodeios literários, uma verdade em preto-e-branco.
Brassaï, um fotógrafo de nome muito complicado (Gyula) adotou o que era o nome de sua cidade natal na parte húngara da Romênia. Naturalizado francês fizera um livro sobre bares, boemia e zonas de meretrício de Paris do após primeira guerra mundial, intitulado “Paris de Nuit”. Conheceu Picasso no Café de Flore e o pintor o chamou, em 1943, para fotografar esculturas para um livro. A relação, mesmo tumultuada, de acertos e desacertos, brigas mesmo, resultaram numa grande amizade. Brassaï fotografou e fez um diário detalhado do que via e sofria na impaciência de Picasso.
Henry Miller disse que Brassaï era um “olho vivo”, Picasso completou dizendo que o húngaro “tem o dom de captar as conversas”. Além do registro fotográfico ficou um livro intitulado “Brassaï conversas com Picasso”, ilustrado com 53 fotos e um texto de se ler lido sem interrupção. Na minha opinião um livro imperdível. Como exemplo, ele conta no livro que Picasso ficou encantado com Marina de Berg, uma jovem bailarina russa: ele a observa sentada em seu atelier, pernas cruzadas, cabeleira ruiva, nariz arrebitado e comenta “Marina é muito bela, esse perfil é adorável…se eu fosse artista pintor…”
Estes três exemplos, os de dois mestres, como Duncan e Brassaï, e o meu ensaio com Portinari, mostram de como é importante o acompanhamento fotográfico, a longo prazo, das atividades de artistas plásticos. Um registro de poucas fotos (não mais do que vinte ou trinta) foi feito por Pierre Verger sobre Pancetti. As fotos de pintores, gravadores, escultores em seus locais de trabalho são peças raras, restritas a registros episódicos perdidos nos arquivos de jornais.
Faltou ao fotojornalismo brasileiro uma mentalidade cultural menos preocupada com o mercantilismo da fotografia ou o vedetismo de resultados imediatos. Claro que para isto teria sido preciso pensar em trabalhos a longo prazo, sem previsão de retorno financeiro. O que se perdeu é irreversível, não adianta chorar o leite derramado.
A arte brasileira teria ficado agradecida, mas muita coisa ainda poderá ser feita, depende da disposição de investir em memória cultural.
P.S. publiquei, em 1972, “Um Candido Pintor Portinari”, com 40 fotos e textos. Expressão e Cultura, tiragem esgotada. Na condição de fundador do Projeto Portinari transferi, em 2006, todo o ensaio para o seu acervo.