Entrevista concedida a André Teixeira e o mestre Flávio Damm publicada na edição 17 da Revista Photo Magazine, de outubro/novembro de 2007.
Exemplar típico do fotógrafo preocupado com as questões sociais, João Laet, do jornal O Dia, já andou por Cuba, Bolívia e Europa, além de passar mais um ano com a Comissão Pastoral da Terra no Pará. Sempre registrando, com arte e evidente simpatia, a luta e dificuldades dos setores mais desfavorecidos. Nessa entrevista, que contou com a inestimável participação de Flávio Damm, ele fala do que viu nessas viagens e da loucura do trabalho no jornal, em que a miséria e violência fazem parte da rotina
Como a fotografia surgiu na sua vida?
Desde muito cedo me senti atraído por ela. Essa atração ficou ainda mais forte durante uma temporada que passei na Europa, entre 1999 e 2000. Fui para lá com a ideia de estudar francês e fotografar. Morava em Paris e viajava, tanto pelo interior da França quanto por Portugal, sempre com a câmera na mão. Quando voltei ao Brasil, tinha certeza do que queria: trabalhar com foto.
Começou em que área?
Consegui alguns frilas, mas fotografando produtos, como jóias, o que definitivamente não me satisfazia. Mas era o que pintava, e ia fazendo, afinal de contas precisava me sustentar. Com a grana que conseguia economizar, fazia minhas viagens para fotografar, e assim fui montando um arquivo e, principalmente, aprimorando olhar para as questões sociais, que sempre me atraíram. Em conversas com Flávio Damm, senti que meu caminho seria trabalhar em um jornal. Ele me ajudou a montar um portfolio e corri atrás de um emprego, até ser chamado para a sucursal da Baixada Fluminense do jornal O Dia, no final de 2005.
Nesse tempo na Europa, que tipo de fotografia você costumava fazer?
Muita fotografia de rua, de preferência sem ser percebido, sem interferir. Já naquela época começava a haver uma mudança das pessoas em relação aos fotógrafos, uma resistência a ser fotografado, que só aumentou desde então. Aquela época romântica, em que todos gostavam de ser fotografados, acabou.
Você chegou a ter problemas com isso?
Em Belleville, bairro de imigrantes de Paris, levei um soco pelas costas quando tentava fotografar o final de uma feira livre. Nesse bairro, existe uma oposição radical a qualquer tipo de imagem. Tanto que, durante os últimos protestos de imigrantes na França, vários fotógrafos e cinegrafistas perderam seus equipamentos enquanto trabalhavam.
A que você atribui essa oposição?
As pessoas, e isso também acontece no Brasil, passaram a perceber o fotógrafo como alguém que pode ganhar muito dinheiro, ou ver sua carreira decolar, com uma foto em que seu sofrimento ou problemas são mostrados. Se sentem explorados, vêem o fotógrafo como um intruso, uma pessoa de fora que está ali apenas para lucrar com seu sofrimento.
Trabalhando no O Dia, um jornal que dá muito espaço para a violência, você cobre muitos casos de assaltos, assassinatos e outros problemas do tipo. Já deu para se acostumar com isso?
O que mais me toca nessas ocasiões é a reação dos que ficam, como os parentes e amigos de uma pessoa assassinada. É claro que fotografar um morto não é agradável, mas já criei uma espécie de capa protetora para esses casos. O difícil mesmo é não se emocionar com uma mãe que perde o filho, por exemplo.
Como agir nessas horas? Como conciliar a necessidade de registrar o momento com o respeito às pessoas?
A grande sabedoria, que eu ainda estou buscando, é saber a hora de fotografar e a de baixar a câmera. Às vezes, basta ficar numa posição mais discreta para conseguir bons registros sem ofender ninguém.
Algum exemplo?
No meu segundo dia de trabalho no jornal, fui fotografar duas pessoas que morreram num acidente numa Kombi. Fiz fotos dos mortos, até que chegou a mãe de um deles. Descontrolada, começou a reclamar com o filho morto, como se ele pudesse voltar à vida. Era uma cena forte, que me tocou muito, e para fotografá-la fui para a janela do carona, de onde via o corpo e o desespero da mãe. Foi uma boa foto, sem desrespeitar a família.
Você passou um período no Pará, trabalhando com a Comissão Pastoral da Terra. Como chegou a eles, e como foi o trabalho? Teve muitas dificuldades?
Eu sempre estive envolvido com o movimento social, com organizações populares, e fiz muitos contatos com pessoas dessa área. Acabei contratado para registrar a ação da CPT na região, onde há muitos conflitos entre trabalhadores rurais e fazendeiros. Fiquei um ano e dois meses por lá, fotografando o dia-a-dia dos trabalhadores, encontros de formação, conflitos e ocupações. O curioso é que você sabe que a violência existe, mas não a vê, não consegue fotografá-la. A região é enorme, os crimes são tocaias que ocorrem no meio da mata, longe de tudo.
O clima de medo chegava até vocês?
Sempre. Eu acompanhava o Frei Henri, um dominicano que, com a morte da Irmã Dorothy, virou a bola da vez. Sua cabeça valia R$ 100.000,00, segundo diziam os jornais da época, enquanto a da Irmã Dorothy custou R$ 50.000,00. Então, a gente acordava sem saber se ia anoitecer. Mas nunca ouvi um disparo de bala, nunca vi um corpo. A gente só ficava sabendo das histórias. É uma violência mais difícil de fotografar que a do Rio, que é mais visível.
Nunca passou por nenhuma situação de perigo?
Numa ocasião, estávamos indo para uma área que estava para ser ocupada e acabamos errando o caminho, entrando na própria sede da fazenda. Na sala havia um monte de homens, todos armados – certamente jagunços, contratados para evitar a ocupação. Inventei que trabalhava para um jornal do Rio, e eles acreditaram. Não sei o que poderia acontecer se descobrissem que eu trabalhava justamente para a CPT, que estava do lado dos trabalhadores.
E a experiência em Cuba, como foi?
Muito boa. Dizem que lá é um “inferno para o rico, purgatório para a classe média e um paraíso para o pobre”, e foi isso mesmo que senti. Se os Estados Unidos acabassem com o bloqueio, seria uma maravilha. Fui para lá num projeto chamado Bras-Cuba, que leva estudantes e outros convidados para conhecer o país. É um lugar fascinante, uma nação que construiu sua própria história.
Há uma ideia de que eles dificultam o trabalho da imprensa, que não permitem fotografias. Você sentiu isso?
Não. Tive toda a liberdade para fotografar o que quisesse. Visitei escolas, fábricas, um hospital. Até o que os revolucionários não previam que acontecesse, como os balneários de turistas, eles nos mostraram. A impressão que tive foi de um país com uma impressionante participação popular, onde representantes de moradores e estudantes têm sua participação nas decisões do governo, ao contrário do que se diz.
Voltando um pouco à nossa realidade, como é trabalhar em meio a tiros e granadas?
Acontece uma coisa interessante comigo. Sem a câmera, fujo de qualquer confusão; com ela, parto para dentro. Acho até que me arrisco mais do que devia, como uma vez em que entrei na favela do Dendê sem colete a prova de balas. Seria uma matéria comum, mas acabamos entrando numa operação da Polícia que se transformou num tiroteio. Vi até uma granada explodindo.
Dá para sentir, tanto pelas suas fotos quanto pela sua trajetória e palavras, que a questão social é muito importante para você. Você acha possível trazer essa preocupação para o trabalho no jornal, ou seja, tentar passar uma mensagem de mudança da situação da cidade ou do país, mesmo não fotografando exatamente o que se deseja?
A rotina do jornal é muito dura, estamos sempre correndo de uma pauta para outra. É claro que fotografando por minha conta, tenho mais liberdade, tanto na hora de escolher o assunto quanto na própria maneira de enquadrar a imagem, mas acho possível, sim, colocar meu olho, minha marca, nas minhas fotos. Mas é um exercício permanente.