Entrevista concedida pelo fotógrafo Zeca Linhares ao repórter/fotógrafo André Teixeira, publicada na edição #20 da Revista Photo Magazine, de junho/julho de 2008.
Fotógrafo de agências e revistas europeias durante a época do exílio, documentarista do patrimônio arquitetônico da cidade do Rio, um sem-número de trabalhos publicados em livros, mais de 20 exposições individuais e, nos últimos anos, especialista em Photoshop, com cursos ministrados a profissionais de todo o Brasil. Esse é um pequeno resumo da carreira de Zeca Linhares, um estudioso dedicado e observador atento da fotografia, que se mantém atualizado mas não se esquece da eterna paixão: a boa e velha fotografia PB. É sobre a carreira, as mudanças na tecnologia e as fontes de inspiração, entre outros assuntos, que ele fala na entrevista abaixo.
Como e quando você começou a fotografar?
A minha formação é de desenho, vem da família. Meu pai, José Linhares, tinha uma bela caligrafia, uma mão preciosa e um traço firme. Sua irmã, Sarita, pintava aquarelas e objetos. Comecei com naturezas-mortas em carvão e passei para o modelo vivo a óleo. Fazia colagens com fotografias, verdadeiros quadros e experiências surrealistas que até hoje decoram a casa de minha mãe. Ganhei uma câmera de meu avô materno, João Vieira Leite, que era fotógrafo amador. Ele trabalhava com uma Roleiflex, flash de lâmpadas e me deu uma Flexaret. Era uma imitação Tcheca da Rollei e com ela fiz a minha primeira “reportagem”: tinha uns 10 ou 12 anos e documentei o Parque Nacional do Itatiaia. As Agulhas Negras, a flora, as cachoeiras, os amigos. Tudo cor e tudo certinho, com paralelismos, equilíbrios tonais… Depois ganhei da minha mãe uma Kodak Retinet 35 milímetros. Tentei um vestibular de arquitetura, pois não me via sobrevivendo da pintura, mas os acontecimentos dos anos 60 viraram minha vida de cabeça para baixo.
O que aconteceu?
A minha família foi duramente perseguida desde o primeiro ato institucional da ditadura, e no início de 1968 fui para Paris. Lá, resolvi fazer Economia, pois pensava em algo que me desse um emprego já que não tinha a menor ideia de quando retornaria ao Brasil. Mas continuei desenhando e pintando: ia para os museus, me sentava num banco e reproduzia o que via. Comecei pelo Museu do Louvre e pelos Renascentistas e fui seguindo.
Mas a fotografia acabou tomando o lugar do desenho…
Tinha levado a minha inseparável Flexaret e mais tarde comprei uma Pentax Spotimatic 35 mm, ainda de rosca e com várias lentes. Ganhei do Gusto Arraes uma Leica M2, que funciona até hoje, e aí fui abandonando um pouco o lápis, trocando-o pelos 36 fotogramas do filme PB. Terminei o curso de Economia, já trabalhando com fotografia. Durante anos fui correspondente da revista grega A Mulher. Eram matérias sobre a grande colônia grega em Paris e na Europa. Fiz alguns trabalhos para a falida O Cruzeiro, e muitas coberturas de moda para o Jornal do Brasil e O Globo. Acho que com a censura eles não tinham assunto, então tome lançamentos das coleções. Vendi para a agência fotográfica Sipa Press, trabalhei muito tempo para uma revista do tipo Quem, em Paris, e também colaborei para uma pequena agência fotográfica especializada em viagens ou cantos insólitos, a Sunset. Diferentemente do Brasil, na Europa os jornais não contratam, poucos têm a “carteira assinada”, a relação se faz por uma agência e devemos ter um agente dentro dela para vender o nosso trabalho e as nossas imagens.
Sempre atuou como frila?
Nos 12 anos que passei em Paris, sempre trabalhei como frila, independente. Estive para ser contratado pelo France Soir, um grande jornal popular. Guardo até hoje a carteira de fotógrafo deles, mas por um pequeno momento me interessei pelo cinema, do qual acabei me afastando quando percebi que não tinha a imaginação de um escritor, mas com isso acabei não indo para o jornal. Quando a agência Viva foi montada, estive também para ingressar nos seus quadros, mas problemas pessoais me impediram. A Viva tinha uma proposta nova, uma tentativa de manter a velha reportagem fotográfica, que já estava em plena decadência com a televisão ao vivo e via satélite. Ela morreu e os seus fotógrafos, Le Querrec, Martine Frank, Depardon e outros, hoje estão na Magnum.
E na volta ao Brasil, como foi a entrada no mercado?
Retornei em 79, com todo mundo. Mas só consegui o meu registro no Brasil no final dos anos 80. Tinha uma gangue não muito simpática no sindicato que me olhava com inveja dos meus doze anos em Paris. Tive que esperar até mudar a direção. Em 1984, o crítico de arte Paulo Sérgio Duarte me chamou para trabalhar no Patrimônio da Cidade do Rio de Janeiro, onde estou até hoje.
Com isso, acabou deixando de lado o fotojornalismo…
Apesar de ter começado no fotojornalismo, nunca me senti como um fotojornalista, ou pelo menos sabia que não o continuaria exercendo. Gosto de ver, viver e sentir o conjunto, não de relatar o fato. Não tenho essa veia. O fotojornalismo na era da televisão ao vivo tem que ser único, uma única fotografia que resuma o fato, pois a televisão 24 horas no ar já contou esse fato. Gosto de contar uma história, talvez um vício antigo da reportagem fotográfica. Acho que sou um documentarista nato.
Fale sobre o trabalho no Patrimônio.
Foi muito bom ser pago para sair por aí documentando o dia a dia do Rio, os seus bairros e a sua arquitetura. Tenho um arquivo monumental, talvez uns 60.000 negativos e cromos, que aos poucos estou digitalizando. Ocupei durante anos o lugar que Augusto Malta ocupou entre 1904 até início dos anos 30.
Por que “ocupei”, no passado? Você ainda não trabalha lá?
Falo no passado porque o atual grupo político que dirige a Prefeitura do Rio odeia fotografia e documentação. Estou jogado num canto, esperando por dias melhores, por gente que não ache que a fotografia vai atrapalhar o negócio deles por criar raízes com o passado. Mas sou e continuo fotógrafo e funcionário da Prefeitura na Secretaria de Patrimônio da Cidade. Aprendi com a vida que tudo passa e um dia esse grupo vai embora e outro ocupará o seu lugar.
Qual é seu trabalho lá?
Tenho duas funções. A primeira é de cadastro. São cerca de 16.000 bens tombados e preservados no município, incluindo estátuas, painéis e pinturas, além de prédios e conjuntos de prédios. É claro que nem todo imóvel tem um valor inestimável, por isso alguns deles são fotografados pelos arquitetos. O segundo é o “filé”: as publicações. Algumas são boas, atualmente estou trabalhando num grande catálogo que será bem realizado, com boa gráfica e bom designer, porém grande parte se perde pelo sistema de concorrências, em que nem sempre o melhor vence e, então, acabam sendo mal impressos.
Sua tese de mestrado foi sobre o Cartier-Bresson. Ele foi uma grande referência na sua fotografia?
Na França, eu me inspirava em Robert Doisneau, Guy Le Querrec, nos filmes de Jacques Tati e até no jogo de pernas de Fred Astaire. Fotografia é um grande balé, uma dança na procura do objeto perfeito, equilibrado e proporcional. Assistia a tudo e folheava em pé livros que não podia comprar. Cartier-Bresson era um deleite. Mantenho dele até hoje o negativo inteiro, a borda preta envolvendo a imagem, pois não as re-enquadro. Como também, o respeito absoluto pelo objeto, o alvo fotográfico e suas amarras geométricas, as linhas e as formas que se transformam no instante único e somente possível para um olho e uma única pessoa.
De quantos livros você participou?
Publiquei muito. Não dá sei o número extao, mas devo ter participado de mais de 40, sobre variados assuntos. O único totalmente pessoal – aquele em que, no Brasil, somos obrigados a escrever e formatar o projeto, dar entrada nas leis de incentivo, buscar patrocínio, fotografar, tratar as imagens, colar no designer para ele não destruir o seu trabalho, dormir na gráfica para controlar os fotolitos, enfim, fazer tudo – foi Da Janela Vê-se o Redentor, já esgotado. Todo em PB, ainda em Tri-X apesar do mundo digital. Uma proposta de mostrar o Redentor como um ícone democrático, que não é visto só por quem mora na orla, como o Pão de Açúcar. O Cristo pode ser visto de janelas das mais variadas classes sociais.
E exposições?
A primeira foi Glimpses, com o Pedro Pinheiro Guimarães, na Galeria de L’Oeil Vivant em Paris. Éramos muito bressonianos e, então, colocamos na parede cenas de rua em PB, margem preta e todo o estilo. Fiz cerca de 20 exposições individuais e outras tantas coletivas. Muitas delas tinham um caráter itinerante. Entre as individuais gosto de Carnavais, exposta em Bogotá e em Estocolmo, Rio Blanco y Negro, em Caracas, Paris, homenagem a Jacques Tati, no Rio, Jardins da Glória à Beira Mar Plantado, uma homenagem ao memorialista Pedro Nava no Paço Imperial, Crônicas Urbanas: Rio de Janeiro, apresentada no Centro Cultural dos Correios no Rio durante o 1° FotoRio e Rio de Janeiro, no Ibirapuera em São Paulo para a 2ª Bienal Internacional de Arquitetura.
Você acha que hoje o Photoshop é uma ferramenta indispensável para o fotógrafo ou ainda é possível sobreviver sem ele?
O Photoshop está muito marcado como o programa que endireita ou faz truques em fotografias, mas não é assim que ele deve ser encarado, e sim como uma grande ferramenta para o fotógrafo. Ele faz, hoje, o papel que o laboratorista cumpria nos tempos do filme: permite que o fotógrafo consiga revelar do seu jeito, gosto e estilo. Os filmes sensíveis, com exceção talvez do PB, vão desaparecer, e com eles irá o laboratorista. Essa função de produzir uma cópia ao gosto do fotógrafo está sendo feita, cada vez mais, pelo Photoshop. E o que é melhor: num espaço de alguns centímetros quadrados, um laptop sobre a mesa, ele faz o que era feito num quarto escuro com ar condicionado, equipamentos e outras tralhas. Mas não é para fazer truques. Isso é para mágicos, quando o fotógrafo tenta todo mundo percebe.
Muita gente ainda resiste a ele…
Acho impossível ser fotógrafo atualmente e ser analfabeto em Photoshop. Hoje, tudo é feito em RAW, que não pode ser impresso ou visualizado e tem que ser aberto por um Plug-In. A imprensa brasileira é a única que resiste ao formato RAW, mas por uma questão colonial e não técnica.
Como assim?
Ter RAW na redação significa ter uma entrada USB e um gravador de mídia, ou seja, o fotógrafo poder levar para casa uma cópia em alta definição ou organizar um arquivo pessoal, e isso sempre foi impensável na imprensa brasileira. É a velha mentalidade do latifúndio sob outra forma.
Quais são as diferenças entre a fotografia em película e a digital?
Acho que há perdas e ganhos com a digitalização. Perde-se o grão e sua magia, a possibilidade de na revelação mudar a textura, ressaltar volumes. O pixel será sempre quadrado e igual em qualquer máquina digital, o que demonstra uma tendência para uma relativa pasteurização. O mesmo ocorre com a questão do formato. Com o negativo ou cromo podíamos modificar o tamanho da cópia final, enquanto que no digital estamos limitados pelos megas de nosso equipamento. Já se sabe de antemão qual o formato máximo de nossa fotografia e isso é muito limitante. Por outro lado, não depender de um laboratório e, sobretudo, do designer gráfico, é sensacional. Ser independente e ter o controle total de todo o processo e de sua fotografia é um ganho precioso para o profissional.
A digitalização da fotografia, então, foi uma vantagem para o fotógafo?
A migração da película para o digital foi muito violenta. Os produtos foram acabando nas lojas e os editores passaram a querer tudo pronto. O ciclo fotografar, revelar e ampliar sempre foi uma coisa lenta e dispendiosa para eles. Esse é o problema central: com o digital pelo mesmo preço, os editores querem ver o resultado. Raros são os fotógrafos que conseguem cobrar separadamente fotografia e tratamento. Antes era natural e lógico cobrar o laboratório. Não interessa quem irá fazer o tratamento digital, mas ele deve ser orçado separadamente. Descarregar muitos megas no computador, visualizar e tratar as que interessam, salvar nos formatos e gravar mídias é um trabalho longo e que exige muita paciência e muitas horas diante de um computador, por isso deve ser cobrado.
Como você analisa o mercado fotográfico no Brasil?
A fotografia no Brasil tem sofrido baques muito violentos. A migração para o digital tem sido muito dura, muita gente boa tem sido descartada e afastada do mercado. Há muita gente nova com um nível de conhecimento técnico muito baixo. Atualmente, estou muito afastado por conta da digitalização do meu acervo. Na Europa, fotógrafo velho vive de seu arquivo, mas aqui no Brasil não é a mesma coisa. Contudo, acho que tenho que organizar e, sobretudo, com o fim progressivo das cópias tradicionais em prata, quero ter tudo recuperado para a nova era das impressões por jato de tinta.
Destaca algum fotógrafo brasileiro?
Gosto do trabalho do Custódio Coimbra. Sinto-me próximo do seu estilo e imagino-me desenvolvendo um projeto conjunto. Também do Severino Silva, que não conheço pessoalmente, mas há nele uma chama de Don McCullin que movimenta a minha alma. Continuo admirando o Flávio Damm, que sem a pressão do cotidiano, se dedica a uma aposentadoria como o diabo gosta: fotografando pelo faro.
Como você classificaria seu estilo fotográfico?
Sou da velha escola. Talvez excessivamente europeu. Sou de chegar de mansinho, esperar o instante e apresentá-lo depois integralmente, sem truques e com a velha margem envolvendo a fotografia. Tenho uma Canon para o dia a dia e só faço RAW. Mas tenho duas M6 e a aposentada M2 para sair à toa na rua. Com elas só uso PB, é a minha alma, é o que gosto: um Tri-X revelado do D76 ou um HP5 revelado no Microphen. O scanner 16 bits e o TIFF também em 16 bits (por canal de cor) completam o ciclo.
Quais são, para você, as principais características de um bom repórter-fotográfico? Que conselho daria para quem está começando agora no fotojornalismo?
Atualmente, o repórter-fotográfico precisa pensar que grande parte do que ele idealiza no seu ato já foi mostrado pela televisão. Quando comecei, eu era ainda uma espécie de “olhos do leitor”, o meu modo de ver se transformaria no fato que aconteceu. Hoje, ele tem que ter a capacidade de resumir o fato, mostrar algo que a televisão não mostrou ou que não consegue mostrar. A avalanche de imagens em movimento é muito grande e raro são aqueles que conseguem fixar o que viram. E essa é a questão central do fotojornalismo atual: ser simples, ser capaz de resumir, de produzir uma imagem que fixe o instante, que não seja somente um complemento da televisão, mas o revelador do fato, a essência que ficará para a história daquele fato. É uma tarefa complexa e que requer muita cultura de um modo geral. E, essa a nossa carência: o ensino de fotografia em Comunicação é uma lástima. Uma pincelada de fotografia dentro de um currículo, algo como 60 horas dentro de um curso com cerca de 3.000 horas.
Isso se reflete na qualidade da fotografia?
Claro. Há um monte de gente vendendo fotografia por quase nada e de qualidade extremamente duvidosa. A mudança na cultura fotográfica é galopante. Com a popularização dos celulares-câmeras, se o ser humano almejava 15 minutos de fama, hoje bastam 10 segundos de telinha porque depois vem um “Shift Del”. As pessoas começam a se acostumar com imagens em baixa resolução, embaçadas e um pouco fora de foco. Dentro em breve, as pessoas terão orgasmos só pelo simples fato de verem uma fotografia no foco e bem distribuída em tons. Isso é grave.